Wednesday 16 September 2015

Como se deve ler a alegoria da caverna?

A alegoria da caverna de Platão não deve ser lida fora do Corpus Platonicum. Pois ela é a alegoria do desvelar de uma verdade específica, contextual, não da manipulação e ocultação televisiva da dimensão social real. Há implicações metafísicas e gnosiológicas no tema de tal mito - como a questão do que é o "real" em sua própria concepção. E essas implicações fazem com que o mito não possa ter um fim em si mesmo para servir a qualquer coisa, isto é, á maneira figurada, senão á filosófica. Ao passo que é notável a estranheza de se pensar - até para um mito - que tais prisioneiros se encontram numa situação tão incomum, que é a de jamais enxergarem a luz do sol refletida nas coisas, conforme tomam as sombras dos objetos projetadas na parede da caverna, como os próprios objetos, negando qualquer outra realidade. Sequer esse enredo do livro sétimo da República é o mais importante para entender a filosofia. Talvez fosse importante por sua designação pedagógica e ilustrativa, para não-filósofos e não-geômetras aceitarem a figura do rei filósofo que a estória ganhou tanta fama, no desejo de Platão doutrinar politicamente o povo para a construção da cidade ideal.

Mas como a filosofia não se mantém no plano imagético, ou seja, filosofia não é mitologia. A alegoria da caverna deixa de ter um fim principalmente mitológico e ganha seu verdadeiro fim na compreensão metafísica. Caso não se entenda a verdade que Platão predispõe com essa alegoria, a sua aplicação será errônea, isto é, tal alegoria antecipa um "télos": a trajetória única do filósofo, que ele realiza na juventude se iniciando no plano físico, pelas disciplinas que agucem seus sentidos ás virtudes ligadas a verdade, como moderação na ginástica e a justa medida na música, para mais tarde, com a geometria, encontrar o enfoque teórico e sagrado na metafísica(a contemplação das formas primeiras e últimas que dão causa a todo resto; o sol situado além da caverna que banha o íntimo da realidade ao revelar sua natureza) - sendo um caminho sem volta o da contemplação, por sua sobriedade e concretude eterna (afinal, há seis livros anteriores que explicam tais detalhes, e por mais que a ordem dos livros seja póstuma, Platão não os escreveu á toa)




Ao não ler e nem conhecer Platão, aplicando uma de suas alegorias, corre-se tanto o risco de achar que saiu de uma caverna e logo entrar em outra, quanto amparar-se na sombra da sombra(não é isso a filosofia, um labirinto de cavernas). Se quiser ler Platão como ele deve ser lido, entenda que as consequências dessa alegoria são divinas, não meramente sociológicas. Pois por si(sem a metafísica), esse mito é sem sentido, ou poderia mesmo dizer "insignificante".



Por Marcelo Monteiro


Thursday 20 August 2015

A psicologia da simplicidade

As pessoas assentem: "é simples assim", no entanto, nunca achei coisa tão complexa como é o "simples". O "simples" é de tal simplicidade , isto é, cheio de conformidades, obviedades e mesmices, que muitas vezes deixamos de dar a devida atenção a esse e, rapidamente, nos vemos vasculhando os lugares mais improváveis, enquanto que buscar o que é simples torna-se uma jornada complexa e, à vista disso, nem tão óbvia assim.

Não se enganem, é aí que reside o paradoxo metódico, o homem passa a ser inverossímil por aparentar ser ele previsto com exagero: muitas vezes o objeto, a meta, a clara finalidade, pode ser simples, mas isso não quer dizer que o meio para alcançá-la esteja à mesma disposição. O absurdo é que parece faltar o caráter intencional justo no ponto em que deveria estar, na meta, mas a meta, o simples da meta, é por si ininteligível e imprevisível. Como demonstrado acima, nos esquecemos com facilidade do que a princípio é óbvio para nós... porque é exatamente óbvio! Sendo assim, nos obrigamos a sustentar esse paradoxo da "busca da clareza", alea jacta est, "a sorte está lançada", quem deseja os fins também deseja seus meios.

Da mesma maneira, o simples é demasiado o caso daquilo que tratamos como "verdade". A verdade é tão simples e óbvia aos nossos olhos que estamos frequentemente deixando-a escapar. Embora, se por um lado há a fuga da verdade prestes a gerar o esquecimento no espírito, pelo outro, há a razão de se filosofar(talvez agora intencionada, como meio), que reencontra com parcimônia e clareza "o evidente" na perplexidade do que foi perdido mas que se achou. Ainda que isso signifique a repetição de um sórdido ciclo.

Meditative Rose, Salvador Dali


Por Marcelo Monteiro

Saturday 20 June 2015

Nietzsche e a dor

Posso dizer que, num envolvimento geral, a filosofia de Nietzsche, muito inspirada pelos estoicos e epicuristas, consiste numa reconciliação com o pathos trágico da vida do homem no fato daquela jamais ter sido livre, mas o parecer de uma inusitada coincidência: uma realidade que ganha seu caráter fatal e imperioso na indiferença diante dos acontecimentos humanos.
O que Nietzsche encontrou no cativeiro e constrangimento da vida e da natureza - a que podemos chamar de vontade cega? Não mais que um amor incondicional inerente a própria afirmação de estar vivo(amor fati), a ponto de pouco antes de colapsar em loucura, abraçou um cavalo que havia acabado de ser chicoteado na praça. Talvez, naquele momento Nietzsche tenha sentido paz e alívio a unir-se ao cavalo, por finalmente ter sido capaz de abraçar o que estava a seu alcance, a dor, isto é, ele fez o que todo homem deveria ter feito, as pazes com as dores do mundo. Pois, segundo ele mesmo("a dor não aparece como objecção contra a vida: «se já não tens alegria alguma para me dar, bem! tens ainda a tua dor...»", Ecce Homo), a dor exprime mais a vontade de viver do que o seu contrário.

Por Marcelo Monteiro

                                                         Sculpture of Friedrich Nietzsche by Arnold Kramer, Weimar 1898

O que é o além-do-homem de Nietzsche?



O "além-do-homem" é a superação da moral do fraco, mas isso não quer dizer que seja literalmente uma volta ao mundo grego, uma volta aos senhores detentores do corpo, um anti-cristianismo, um paganismo, um atletismo olímpico, ou qualquer coisa "anti-moderna", ou pré-moderna, que suponha uma espécie de super-homem e "super humano" (homo superioris), que não é o Übermensch de Nietzsche. Em primeiro lugar, Nietzsche fala de algo que superou o homem, por isso se emprega o termo correto como "além-do-homem" (Übermensch), ou se preferir, no inglês "overman", que se aproxima do termo alemão.

Dessa forma, Nietzsche afirma justamente o contrário, o termo "super-homem", que se emprega incorretamente a personagem Zaratustra, no limite, é o humano demasiado humano que, por possuir o ato da linguagem, diga-se de passagem, um instinto de criar enunciados verdadeiros e falsos, cujo uso é a sobrevivência na vontade de poder, ao emitir juízos, cai no conto da moral do fraco e divide o mundo do devir em bom e mau; real e ilusório; atual e prometido; forte e fraco; ser e não-ser, etc., em outras palavras: na metafísica do verdadeiro e do falso; a típica dicotomia humana demasiada humana. A saber, o além-do-homem não é isso, mas, amiúde, o que luta contra isso, Nietzsche quer dizer que o Übermensch é uma superação da própria ideia de homem e da natureza humana de julgar e separar o mundo do devir em dualidades, um exercício tipicamente platônico e eleata, e mais tarde cristão (o platonismo do povo), que inventa realidades de vida enquanto acusa a outra parte de ser infeliz.

Desse modo, o além-do-homem não pode aceitar-se como "forte", nem como volta a aristocracia antiga, pois isso é pressupor a fraqueza posta do outro lado da realidade, isto é, como moralmente fraco e, assim, demasiar sua queda na situaçao de humano. Portanto, o Übermensch não é o forte nem o fraco, ele é o advir e o devir heraclitiano, a novidade, a consciência que superou tudo o que é humano, à medida que a História demonstra o homem como caminhada entre o primata e um horizonte incerto de possibilidades, a saber, a corda bamba ao sair de um estado primitivo que, ora despenca de um lado, ora do outro, na intenção de julgar o mundo e se ver livre de seu fatum. Em vista disso, o além-do-homem é a realização dessa possibilidade incerta da condição de existência do ser humano diante de um auto-livramento. Todavia, para Nietzsche, a liberdade, enquanto condição moral e humana, não é um fim em si. Mas resultado desse ajuizamento moral, que faz o homem se ver indisposto à vida, como ausente de finalidade nela.
Mas, afinal, qual é a relação do Übermensch com o herói trágico grego? A formula, como bem diz Nietzsche, é amor fati, e tanto o herói grego quanto o além-do-homem cortejam o fatum (destino), mas não da maneira estóica, que encontra no pessimismo trágico a resignação às fatalidades da vida e, desse modo, o livramento do fatum, mas esse amor ao destino quer a repetição incessante de tudo que já foi vivido, não quer acusar mais os erros como aqueles que não são partes fatum, mas aceitá-los como parte constitutiva e viva desse. Isso implica em aceitar um novo modo de ser também, naquilo que Heidegger denomina de "dasein", isto é, um ser presentemente no "aí", o ser enquanto acontecimento, o ser no mundo, o ser como atuante nos aspectos inéditos da realidade. Não mais como um ente abstrato, resultado de relações binárias do juízo, segundo o verdadeiro ou falso, como Deus e a moral fora concebido.

Todavia, o além-do-homem é um modo de ser para a morte, pois se ele é algo em acontecimento, então ele tem um fim, mas essa é uma morte enigmática também, que prescreve não mais que o eterno retorno, incessante a todos os atos e eventos que fizeram o ser-aí enquanto presente. Por isso, a morte é para o ser um ponto de virada e volta à sua finalidade - um eterno presente - e não um real fim da vida, visto que essa é a imanência do ser-aí.

Quem é o Übermensch? O Übermensch é o que Zaratustra se tornou após a sua peregrinação, um ser-aí, visto que Zaratustra não era mais animal, isto é, isento de consciência moral, nem mais homem, aflito por suas dictomias), portanto, é notável que o Übermensch seja dasein, que supera as falsas dicotomias da consciência moral, que leva a uma negligencia de si enquanto fatum, isto é, ao niilismo. No limite, o Übermensch é a consciência capaz de convidar todas as suas facetas à cerimônia do destino, sem fazer cara feia para nenhuma delas, buscando a reconciliação de reis e de burros na superação e transvalorização de todos os valores. Enquanto os reis e os burros vivem em cada um de nós, como Walt Whitman diria, "eu sou contraditório, eu sou imenso, muitos vivem em mim".


Um homem que é capaz de aceitar todas as suas facetas é um homem que deixa de ser frágil, é um homem que superou sua própria condição de homem. Mas alerta Zaratustra, isso é para apenas alguns poucos. O mundo do Übermensch não é um mundo povoado como o nosso, de seres pequenos e mesquinhos, é um mundo deserto que vê sua excepcionalidade na solidão, mas próspero, visto que é de virtuosos. É um mundo de peregrinos que se dirigem ao fatum, não de rebanhos quese criam confinados em seus currais. É um mundo onde um homem jamais se juntaria a outro para acusar o seguinte de erro, de blasfêmia, de mentira ou de pecado. Em suma, é um mundo que não aceita anti-fatos e contra-fatos, pois só há o fato, mas o amor fati.



Por Marcelo Monteiro

Thursday 18 June 2015

Ambas natureza e técnica são para o homem

Foto de uma banana selvagem


O mais burlesco de algumas pessoas de religião secular, ou do movimento da Nova Era, na tentativa de naturalizar o homem, é quando é quando elas alegam ao morder uma banana e descascar uma laranja (apesar de usarem faca), que a casca é uma "embalagem natural", então agradecem escrupulosamente a natureza por ter sempre sido farta, ao enaltecer a ideia do "Um" com a natureza o velho mito do bom-selvagem: o de não tirar nada além do que consome, porque, para eles, a natureza já é suficientemente boa, bela e abundante.

Eles se veem integrados a esse ciclo natural de renovação da cadeia alimentar - como se fossem mais um animal - no entanto, poucos sabem que a banana sem sementes, doce, carnuda e simples de descascar, é produto da técnica humana; ou seja, da seleção artificial criteriosa ao longo de gerações desde a pré-história; dessa mesma forma, também são as demais frutas tal como as conhecemos e consumimos; sendo que jamais existem na natureza como frutas silvestres para serem apanhadas. É evidente que o mesmo serve para a faca que as descascam (ao menos sendo isso óbvio a todo homem).

Por um viés material-dialético, o homem não é nada sem mexer, bulir, revirar a natureza e, tampouco alguma vez abandonou a pretensão de estar além do animal ao nu e ao cru. Com efeito, a natureza sempre pareceu escassa de alguma maneira a ele, justamente daí que vem a intenção de acrescentar "algo". Só o homem é capaz de produzir fogo e dormir suspenso no ar, longe de sanguessugas e insetos hematófagos nos pântanos; e do mesmo modo, produzir átomos de elementos que jamais existiriam na natureza disponível; que é mais uma maneira de usar o fogo.

Enquanto a natureza continuar escassa à vontade humana, o homem vai permanecer criativo fazendo o que sabe fazer de melhor: "alterá-la; e é com a força do trabalho que o homem empenha-se para alterá-la; digamos que é o mais básico em toda a finalidade material da vida humana. Por mais que no fundo a alteração e a transformação se permita somente em certo sentido estrito, mais precisamente, de forma implosiva e interna 
à consciência do homem. Isto é, uma transformação pertencente a uma realidade simbólica própria do que é viver, ao passo que essa permitiria ao homem somente existir "per se" para ele mesmo e não para outra realidade; por exemplo: o que é tudo aquilo que simboliza uma "casa"; uma "faca"; uma "fogueira"; o "martelo"; o "arado" para este homem; enquanto que a natureza, também "per se", fora dessa realidade simbólica humana, jamais mudaria de forma veras, ou, alguma vez, poderia essa ser reduzida ao conhecimento humano, sem estar disposta enfaticamente a apenas sua representação misteriosa e emblemática; urgindo-se de forma distinta de todos os objetos da técnica, destarte, inadiável e atemporal.

Como Emerson a entende em seu ensaio de mesmo nome chamado "Natureza"; assim ele diz: "Natureza, em seu sentido comum, refere-se as essências não modificadas pelo homem: o espaço, o ar, o rio, a folha". Por outro lado, ele define a "arte", ou se preferir, "técnica", em algo que vejo como a representação, isto é, a imagem do objeto (natureza) pela mesma via que essa imagem é a realização do espírito do humano: "Arte se aplica à mescla da vontade do homem com essas mesmas coisas, como se dá em uma casa, um canal, uma estátua, um quadro". Dado que, Emerson repreende a definição de natureza com um "porém": "tomadas em conjunto as operações do homem são tão insignificantes - mera escavação, cozimento, arrumação, lavagem - que, comparadas a impressão grandiosa que o mundo deixa na mente humana, em nada alteram o produto".

Assim, é possível interpretar e averiguar que a diferença fundamental da natureza e do homem é que, enquanto a primeira, a saber o objeto, se encontra determinado substancialmente na realidade; o segundo (o homem) se permite a acontecer num dasein (ser aí); isto é: estar presente - tal que é o existir da maneira mais profunda no que Heidegger assente por existência: tanto pela via da mudança quanto pela via da não mudança, ou da via do ser e da falta dele, da via da substância e da contingência, da mente e do corpo, do natural e do sintético, ou mesmo da via do indeterminado enquanto determinado, o homem sendo o que existe pelo ser posto unicamente no presente.

E o trabalho humano, apesar de um ciclo de transformação, e parecendo querer ser uma corrupção do que já é determinado no mundo natural, é um processo elementar, eu diria, além de água, fogo, terra e ar, como os alquimistas disporiam: o "quinto elemento" ou a 
quintessência, pela busca de vir a ser do homem, a manipulação de todos os demais elementos. Talvez, todo esse ensaio, foi da justa pretensão em dizer que a natureza é mais doada para o homem, do que a essência do homem é para ela, dessa forma, estando ele sujeito a sua própria história, conjuntamente à técnica. O homem se doa para si mesmo e não para a natureza, que ultrapassa seu semblante temporal; sendo que no tempo ele consegue se fazer como eixo central da realidade representativa; essa que é a sua mesma.

Por Marcelo Monteiro