Saturday 20 June 2015

Nietzsche e a dor

Posso dizer que, num envolvimento geral, a filosofia de Nietzsche, muito inspirada pelos estoicos e epicuristas, consiste numa reconciliação com o pathos trágico da vida do homem no fato daquela jamais ter sido livre, mas o parecer de uma inusitada coincidência: uma realidade que ganha seu caráter fatal e imperioso na indiferença diante dos acontecimentos humanos.
O que Nietzsche encontrou no cativeiro e constrangimento da vida e da natureza - a que podemos chamar de vontade cega? Não mais que um amor incondicional inerente a própria afirmação de estar vivo(amor fati), a ponto de pouco antes de colapsar em loucura, abraçou um cavalo que havia acabado de ser chicoteado na praça. Talvez, naquele momento Nietzsche tenha sentido paz e alívio a unir-se ao cavalo, por finalmente ter sido capaz de abraçar o que estava a seu alcance, a dor, isto é, ele fez o que todo homem deveria ter feito, as pazes com as dores do mundo. Pois, segundo ele mesmo("a dor não aparece como objecção contra a vida: «se já não tens alegria alguma para me dar, bem! tens ainda a tua dor...»", Ecce Homo), a dor exprime mais a vontade de viver do que o seu contrário.

Por Marcelo Monteiro

                                                         Sculpture of Friedrich Nietzsche by Arnold Kramer, Weimar 1898

O que é o além-do-homem de Nietzsche?



O "além-do-homem" é a superação da moral do fraco, mas isso não quer dizer que seja literalmente uma volta ao mundo grego, uma volta aos senhores detentores do corpo, um anti-cristianismo, um paganismo, um atletismo olímpico, ou qualquer coisa "anti-moderna", ou pré-moderna, que suponha uma espécie de super-homem e "super humano" (homo superioris), que não é o Übermensch de Nietzsche. Em primeiro lugar, Nietzsche fala de algo que superou o homem, por isso se emprega o termo correto como "além-do-homem" (Übermensch), ou se preferir, no inglês "overman", que se aproxima do termo alemão.

Dessa forma, Nietzsche afirma justamente o contrário, o termo "super-homem", que se emprega incorretamente a personagem Zaratustra, no limite, é o humano demasiado humano que, por possuir o ato da linguagem, diga-se de passagem, um instinto de criar enunciados verdadeiros e falsos, cujo uso é a sobrevivência na vontade de poder, ao emitir juízos, cai no conto da moral do fraco e divide o mundo do devir em bom e mau; real e ilusório; atual e prometido; forte e fraco; ser e não-ser, etc., em outras palavras: na metafísica do verdadeiro e do falso; a típica dicotomia humana demasiada humana. A saber, o além-do-homem não é isso, mas, amiúde, o que luta contra isso, Nietzsche quer dizer que o Übermensch é uma superação da própria ideia de homem e da natureza humana de julgar e separar o mundo do devir em dualidades, um exercício tipicamente platônico e eleata, e mais tarde cristão (o platonismo do povo), que inventa realidades de vida enquanto acusa a outra parte de ser infeliz.

Desse modo, o além-do-homem não pode aceitar-se como "forte", nem como volta a aristocracia antiga, pois isso é pressupor a fraqueza posta do outro lado da realidade, isto é, como moralmente fraco e, assim, demasiar sua queda na situaçao de humano. Portanto, o Übermensch não é o forte nem o fraco, ele é o advir e o devir heraclitiano, a novidade, a consciência que superou tudo o que é humano, à medida que a História demonstra o homem como caminhada entre o primata e um horizonte incerto de possibilidades, a saber, a corda bamba ao sair de um estado primitivo que, ora despenca de um lado, ora do outro, na intenção de julgar o mundo e se ver livre de seu fatum. Em vista disso, o além-do-homem é a realização dessa possibilidade incerta da condição de existência do ser humano diante de um auto-livramento. Todavia, para Nietzsche, a liberdade, enquanto condição moral e humana, não é um fim em si. Mas resultado desse ajuizamento moral, que faz o homem se ver indisposto à vida, como ausente de finalidade nela.
Mas, afinal, qual é a relação do Übermensch com o herói trágico grego? A formula, como bem diz Nietzsche, é amor fati, e tanto o herói grego quanto o além-do-homem cortejam o fatum (destino), mas não da maneira estóica, que encontra no pessimismo trágico a resignação às fatalidades da vida e, desse modo, o livramento do fatum, mas esse amor ao destino quer a repetição incessante de tudo que já foi vivido, não quer acusar mais os erros como aqueles que não são partes fatum, mas aceitá-los como parte constitutiva e viva desse. Isso implica em aceitar um novo modo de ser também, naquilo que Heidegger denomina de "dasein", isto é, um ser presentemente no "aí", o ser enquanto acontecimento, o ser no mundo, o ser como atuante nos aspectos inéditos da realidade. Não mais como um ente abstrato, resultado de relações binárias do juízo, segundo o verdadeiro ou falso, como Deus e a moral fora concebido.

Todavia, o além-do-homem é um modo de ser para a morte, pois se ele é algo em acontecimento, então ele tem um fim, mas essa é uma morte enigmática também, que prescreve não mais que o eterno retorno, incessante a todos os atos e eventos que fizeram o ser-aí enquanto presente. Por isso, a morte é para o ser um ponto de virada e volta à sua finalidade - um eterno presente - e não um real fim da vida, visto que essa é a imanência do ser-aí.

Quem é o Übermensch? O Übermensch é o que Zaratustra se tornou após a sua peregrinação, um ser-aí, visto que Zaratustra não era mais animal, isto é, isento de consciência moral, nem mais homem, aflito por suas dictomias), portanto, é notável que o Übermensch seja dasein, que supera as falsas dicotomias da consciência moral, que leva a uma negligencia de si enquanto fatum, isto é, ao niilismo. No limite, o Übermensch é a consciência capaz de convidar todas as suas facetas à cerimônia do destino, sem fazer cara feia para nenhuma delas, buscando a reconciliação de reis e de burros na superação e transvalorização de todos os valores. Enquanto os reis e os burros vivem em cada um de nós, como Walt Whitman diria, "eu sou contraditório, eu sou imenso, muitos vivem em mim".


Um homem que é capaz de aceitar todas as suas facetas é um homem que deixa de ser frágil, é um homem que superou sua própria condição de homem. Mas alerta Zaratustra, isso é para apenas alguns poucos. O mundo do Übermensch não é um mundo povoado como o nosso, de seres pequenos e mesquinhos, é um mundo deserto que vê sua excepcionalidade na solidão, mas próspero, visto que é de virtuosos. É um mundo de peregrinos que se dirigem ao fatum, não de rebanhos quese criam confinados em seus currais. É um mundo onde um homem jamais se juntaria a outro para acusar o seguinte de erro, de blasfêmia, de mentira ou de pecado. Em suma, é um mundo que não aceita anti-fatos e contra-fatos, pois só há o fato, mas o amor fati.



Por Marcelo Monteiro

Thursday 18 June 2015

Ambas natureza e técnica são para o homem

Foto de uma banana selvagem


O mais burlesco de algumas pessoas de religião secular, ou do movimento da Nova Era, na tentativa de naturalizar o homem, é quando é quando elas alegam ao morder uma banana e descascar uma laranja (apesar de usarem faca), que a casca é uma "embalagem natural", então agradecem escrupulosamente a natureza por ter sempre sido farta, ao enaltecer a ideia do "Um" com a natureza o velho mito do bom-selvagem: o de não tirar nada além do que consome, porque, para eles, a natureza já é suficientemente boa, bela e abundante.

Eles se veem integrados a esse ciclo natural de renovação da cadeia alimentar - como se fossem mais um animal - no entanto, poucos sabem que a banana sem sementes, doce, carnuda e simples de descascar, é produto da técnica humana; ou seja, da seleção artificial criteriosa ao longo de gerações desde a pré-história; dessa mesma forma, também são as demais frutas tal como as conhecemos e consumimos; sendo que jamais existem na natureza como frutas silvestres para serem apanhadas. É evidente que o mesmo serve para a faca que as descascam (ao menos sendo isso óbvio a todo homem).

Por um viés material-dialético, o homem não é nada sem mexer, bulir, revirar a natureza e, tampouco alguma vez abandonou a pretensão de estar além do animal ao nu e ao cru. Com efeito, a natureza sempre pareceu escassa de alguma maneira a ele, justamente daí que vem a intenção de acrescentar "algo". Só o homem é capaz de produzir fogo e dormir suspenso no ar, longe de sanguessugas e insetos hematófagos nos pântanos; e do mesmo modo, produzir átomos de elementos que jamais existiriam na natureza disponível; que é mais uma maneira de usar o fogo.

Enquanto a natureza continuar escassa à vontade humana, o homem vai permanecer criativo fazendo o que sabe fazer de melhor: "alterá-la; e é com a força do trabalho que o homem empenha-se para alterá-la; digamos que é o mais básico em toda a finalidade material da vida humana. Por mais que no fundo a alteração e a transformação se permita somente em certo sentido estrito, mais precisamente, de forma implosiva e interna 
à consciência do homem. Isto é, uma transformação pertencente a uma realidade simbólica própria do que é viver, ao passo que essa permitiria ao homem somente existir "per se" para ele mesmo e não para outra realidade; por exemplo: o que é tudo aquilo que simboliza uma "casa"; uma "faca"; uma "fogueira"; o "martelo"; o "arado" para este homem; enquanto que a natureza, também "per se", fora dessa realidade simbólica humana, jamais mudaria de forma veras, ou, alguma vez, poderia essa ser reduzida ao conhecimento humano, sem estar disposta enfaticamente a apenas sua representação misteriosa e emblemática; urgindo-se de forma distinta de todos os objetos da técnica, destarte, inadiável e atemporal.

Como Emerson a entende em seu ensaio de mesmo nome chamado "Natureza"; assim ele diz: "Natureza, em seu sentido comum, refere-se as essências não modificadas pelo homem: o espaço, o ar, o rio, a folha". Por outro lado, ele define a "arte", ou se preferir, "técnica", em algo que vejo como a representação, isto é, a imagem do objeto (natureza) pela mesma via que essa imagem é a realização do espírito do humano: "Arte se aplica à mescla da vontade do homem com essas mesmas coisas, como se dá em uma casa, um canal, uma estátua, um quadro". Dado que, Emerson repreende a definição de natureza com um "porém": "tomadas em conjunto as operações do homem são tão insignificantes - mera escavação, cozimento, arrumação, lavagem - que, comparadas a impressão grandiosa que o mundo deixa na mente humana, em nada alteram o produto".

Assim, é possível interpretar e averiguar que a diferença fundamental da natureza e do homem é que, enquanto a primeira, a saber o objeto, se encontra determinado substancialmente na realidade; o segundo (o homem) se permite a acontecer num dasein (ser aí); isto é: estar presente - tal que é o existir da maneira mais profunda no que Heidegger assente por existência: tanto pela via da mudança quanto pela via da não mudança, ou da via do ser e da falta dele, da via da substância e da contingência, da mente e do corpo, do natural e do sintético, ou mesmo da via do indeterminado enquanto determinado, o homem sendo o que existe pelo ser posto unicamente no presente.

E o trabalho humano, apesar de um ciclo de transformação, e parecendo querer ser uma corrupção do que já é determinado no mundo natural, é um processo elementar, eu diria, além de água, fogo, terra e ar, como os alquimistas disporiam: o "quinto elemento" ou a 
quintessência, pela busca de vir a ser do homem, a manipulação de todos os demais elementos. Talvez, todo esse ensaio, foi da justa pretensão em dizer que a natureza é mais doada para o homem, do que a essência do homem é para ela, dessa forma, estando ele sujeito a sua própria história, conjuntamente à técnica. O homem se doa para si mesmo e não para a natureza, que ultrapassa seu semblante temporal; sendo que no tempo ele consegue se fazer como eixo central da realidade representativa; essa que é a sua mesma.

Por Marcelo Monteiro