Saturday 20 June 2015

O que é o além-do-homem de Nietzsche?



O "além-do-homem" é a superação da moral do fraco, mas isso não quer dizer que seja literalmente uma volta ao mundo grego, uma volta aos senhores detentores do corpo, um anti-cristianismo, um paganismo, um atletismo olímpico, ou qualquer coisa "anti-moderna", ou pré-moderna, que suponha uma espécie de super-homem e "super humano" (homo superioris), que não é o Übermensch de Nietzsche. Em primeiro lugar, Nietzsche fala de algo que superou o homem, por isso se emprega o termo correto como "além-do-homem" (Übermensch), ou se preferir, no inglês "overman", que se aproxima do termo alemão.

Dessa forma, Nietzsche afirma justamente o contrário, o termo "super-homem", que se emprega incorretamente a personagem Zaratustra, no limite, é o humano demasiado humano que, por possuir o ato da linguagem, diga-se de passagem, um instinto de criar enunciados verdadeiros e falsos, cujo uso é a sobrevivência na vontade de poder, ao emitir juízos, cai no conto da moral do fraco e divide o mundo do devir em bom e mau; real e ilusório; atual e prometido; forte e fraco; ser e não-ser, etc., em outras palavras: na metafísica do verdadeiro e do falso; a típica dicotomia humana demasiada humana. A saber, o além-do-homem não é isso, mas, amiúde, o que luta contra isso, Nietzsche quer dizer que o Übermensch é uma superação da própria ideia de homem e da natureza humana de julgar e separar o mundo do devir em dualidades, um exercício tipicamente platônico e eleata, e mais tarde cristão (o platonismo do povo), que inventa realidades de vida enquanto acusa a outra parte de ser infeliz.

Desse modo, o além-do-homem não pode aceitar-se como "forte", nem como volta a aristocracia antiga, pois isso é pressupor a fraqueza posta do outro lado da realidade, isto é, como moralmente fraco e, assim, demasiar sua queda na situaçao de humano. Portanto, o Übermensch não é o forte nem o fraco, ele é o advir e o devir heraclitiano, a novidade, a consciência que superou tudo o que é humano, à medida que a História demonstra o homem como caminhada entre o primata e um horizonte incerto de possibilidades, a saber, a corda bamba ao sair de um estado primitivo que, ora despenca de um lado, ora do outro, na intenção de julgar o mundo e se ver livre de seu fatum. Em vista disso, o além-do-homem é a realização dessa possibilidade incerta da condição de existência do ser humano diante de um auto-livramento. Todavia, para Nietzsche, a liberdade, enquanto condição moral e humana, não é um fim em si. Mas resultado desse ajuizamento moral, que faz o homem se ver indisposto à vida, como ausente de finalidade nela.
Mas, afinal, qual é a relação do Übermensch com o herói trágico grego? A formula, como bem diz Nietzsche, é amor fati, e tanto o herói grego quanto o além-do-homem cortejam o fatum (destino), mas não da maneira estóica, que encontra no pessimismo trágico a resignação às fatalidades da vida e, desse modo, o livramento do fatum, mas esse amor ao destino quer a repetição incessante de tudo que já foi vivido, não quer acusar mais os erros como aqueles que não são partes fatum, mas aceitá-los como parte constitutiva e viva desse. Isso implica em aceitar um novo modo de ser também, naquilo que Heidegger denomina de "dasein", isto é, um ser presentemente no "aí", o ser enquanto acontecimento, o ser no mundo, o ser como atuante nos aspectos inéditos da realidade. Não mais como um ente abstrato, resultado de relações binárias do juízo, segundo o verdadeiro ou falso, como Deus e a moral fora concebido.

Todavia, o além-do-homem é um modo de ser para a morte, pois se ele é algo em acontecimento, então ele tem um fim, mas essa é uma morte enigmática também, que prescreve não mais que o eterno retorno, incessante a todos os atos e eventos que fizeram o ser-aí enquanto presente. Por isso, a morte é para o ser um ponto de virada e volta à sua finalidade - um eterno presente - e não um real fim da vida, visto que essa é a imanência do ser-aí.

Quem é o Übermensch? O Übermensch é o que Zaratustra se tornou após a sua peregrinação, um ser-aí, visto que Zaratustra não era mais animal, isto é, isento de consciência moral, nem mais homem, aflito por suas dictomias), portanto, é notável que o Übermensch seja dasein, que supera as falsas dicotomias da consciência moral, que leva a uma negligencia de si enquanto fatum, isto é, ao niilismo. No limite, o Übermensch é a consciência capaz de convidar todas as suas facetas à cerimônia do destino, sem fazer cara feia para nenhuma delas, buscando a reconciliação de reis e de burros na superação e transvalorização de todos os valores. Enquanto os reis e os burros vivem em cada um de nós, como Walt Whitman diria, "eu sou contraditório, eu sou imenso, muitos vivem em mim".


Um homem que é capaz de aceitar todas as suas facetas é um homem que deixa de ser frágil, é um homem que superou sua própria condição de homem. Mas alerta Zaratustra, isso é para apenas alguns poucos. O mundo do Übermensch não é um mundo povoado como o nosso, de seres pequenos e mesquinhos, é um mundo deserto que vê sua excepcionalidade na solidão, mas próspero, visto que é de virtuosos. É um mundo de peregrinos que se dirigem ao fatum, não de rebanhos quese criam confinados em seus currais. É um mundo onde um homem jamais se juntaria a outro para acusar o seguinte de erro, de blasfêmia, de mentira ou de pecado. Em suma, é um mundo que não aceita anti-fatos e contra-fatos, pois só há o fato, mas o amor fati.



Por Marcelo Monteiro

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